Ir para o conteúdo

A nova batalha do voto: por que a percepção do 'rumo certo' transcende a aprovação do líder

A decisão de voto, no Brasil, é influenciada tanto por vínculos afetivos com lideranças carismáticas quanto por julgamentos retrospectivos sobre o desempenho do governo e o estado geral do país.

O desafio agora, para o campo governista, é não cometer o erro clássico da miopia estratégica

O Brasil se aproxima de 2026 com um cenário político marcado por uma tensão estratégica entre percepção e aprovação. De um lado, o presidente Lula mantém uma base sólida de apoio pessoal, resultado de seu capital simbólico, histórico político e ações recentes que fortaleceram sua imagem pública. De outro, uma parcela crescente da população expressa a sensação de que o país não está no “rumo certo”. Essa dissonância não é falha metodológica nem paradoxo inusitado; é expressão de um eleitorado que opera em múltiplas camadas de avaliação — simbólica, emocional, moral e pragmática.

A compreensão dessa ambivalência é hoje a principal chave para qualquer leitura séria da conjuntura e, mais do que isso, um ponto de partida indispensável para a formulação de estratégias eleitorais. O comportamento do eleitor brasileiro não cabe em categorias simplificadoras. A decisão de voto, no Brasil, é influenciada tanto por vínculos afetivos com lideranças carismáticas quanto por julgamentos retrospectivos sobre o desempenho do governo e o estado geral do país. Lula, com seu legado e presença simbólica, segue sendo aprovado por muitos, mesmo entre aqueles que desconfiam da direção que o país tomou. A coexistência desses sentimentos não é incoerente — é complexa. E é nesse terreno de contradições que a disputa de 2026 será travada.

Os dados ajudam a entender a profundidade dessa insatisfação. Em 2025, mais de 54% dos brasileiros apontaram a corrupção como o maior problema do país, à frente de temas como criminalidade, drogas e inflação. A preocupação não é gratuita. Em 2024, o Brasil registrou sua pior colocação no Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional, com alertas severos sobre o enfraquecimento institucional e a sensação generalizada de impunidade. A crise de confiança se estende ao sistema político como um todo. O Congresso Nacional sofre rejeição majoritária, e a confiança no Executivo e no Judiciário também se deteriora. Em paralelo, instituições associadas à ordem e disciplina, como as Forças Armadas, a Polícia Militar e as igrejas, continuam sendo percebidas como referências de estabilidade. Esse descompasso aponta para um deslocamento simbólico: o cidadão comum, diante da baixa performance do Estado, busca sentido e estrutura em instituições que não necessariamente operam no coração da democracia representativa.

Outro vetor relevante dessa equação é a pauta de costumes. Ao contrário do que muitas análises sugerem, essa agenda não ocupa o topo das prioridades da maioria da população. No entanto, exerce um papel de veto poderoso. Não se trata tanto do que o eleitor quer afirmar, mas do que se recusa a tolerar. A simples associação de um candidato a temas como legalização do aborto ou relativização da política de segurança pública pode inviabilizar sua candidatura para eleitores conservadores, independentemente de seus êxitos econômicos ou sociais. Essa lógica do “não voto” é decisiva, especialmente entre os mais jovens, onde a adesão simbólica à direita — associada à ordem, moralidade e combate ao crime — funciona como elemento de identidade política. Nesse campo, a guerra cultural não é uma disputa de políticas públicas, mas de valores e pertencimento. Ignorar esse aspecto tem custado caro à esquerda em ciclos recentes.

Apesar desse ambiente, as pesquisas mais recentes indicam que Lula mantém vantagem significativa em todos os cenários testados. Segundo levantamento Genial/Quaest de setembro de 2025, o presidente venceria com folga adversários como Tarcísio de Freitas (43% a 35%) e Michelle Bolsonaro (47% a 32%) em um eventual segundo turno. Essa vantagem decorre de uma reversão de tendência ocorrida a partir de agosto, após um período de desgaste. Dois fatores explicam essa recuperação: a melhora na percepção dos preços dos alimentos, que impacta diretamente o cotidiano das classes populares, e a postura firme de Lula diante das tarifas protecionistas de Donald Trump, o que reforçou sua imagem de defensor dos interesses nacionais frente a pressões externas.

O desafio agora, para o campo governista, é não cometer o erro clássico da miopia estratégica. Apoiar-se exclusivamente na comparação administrativa ou na entrega econômica como garantia de vitória seria desconsiderar a centralidade da dimensão simbólica e moral do voto. O eleitor quer resultados, sim — mas também exige coerência ética, identidade cultural e segurança emocional. A comunicação política precisa evitar confrontos desnecessários em temas sensíveis e apresentar um projeto de país que dialogue com o cotidiano real, sem didatismos, nem condescendência. O papel da esquerda não é abandonar princípios, mas entender que, em um ambiente de disputas identitárias e ansiedade institucional, forma e conteúdo são igualmente estratégicos.

Para a oposição de direita e centro-direita, o maior obstáculo é a fragmentação. A pulverização de candidaturas, somada à falta de uma narrativa nacional unificadora, impede a consolidação de uma alternativa competitiva. A tarefa que se impõe é construir uma candidatura que represente os valores conservadores com autenticidade, mas que também seja percebida como competente, moderada e capaz de oferecer estabilidade. Não basta prometer ruptura: é preciso oferecer direção. A direita precisa mostrar que compreende as angústias do eleitorado e que é capaz de liderar com responsabilidade.

A disputa de 2026 será menos sobre estatísticas e mais sobre escuta. Os dados continuarão sendo instrumentos indispensáveis, mas o voto será decidido na capacidade de decifrar os silêncios, as emoções difusas e os sinais morais que o eleitorado emite. Os estrategistas mais bem-sucedidos não serão os que analisarem melhor as curvas de intenção de voto, mas os que souberem interpretar a alma coletiva que habita por trás dos números. A verdadeira batalha será vencida por quem entender, de fato, o que o Brasil está tentando dizer.

Publicidade BEMOL
Publicidade TCE
Publicidade ATEM
Publicidade Parintins
Publicidade UEA

Mais Recentes