É impossível não se emocionar. Quem já esteve lá e viveu momentos inesquecíveis naquele ambiente de cinema, livros, vinis, gibis, cartazes e peças “sacanas” da arte do erotismo, sente um arrepio na pele e um frio na barriga. Se fechar os olhos, vai ouvir a gargalhada estrondosa do criador daquele universo, o radialista, jornalista, advogado e ex-secretário de estado de Turismo e de Cultura, Joaquim Marinho. E com certeza, a reprise de um filme, talvez em preto e branco, vai passar na cabeça, com cenas do dia em que o cartunista Ziraldo passou por lá; Henfil desenhou cartazes para a Emamtur; Fausto Wolf (Pasquim) tomou cerveja com Paulo Graça, Simão Pessoa e eu; Alcione arregalou os olhos para peças de arte erótica; Fafá de Belém estremeceu as paredes com sua gargalhada e Vinícius de Moraes esvaziou a garrafa de whisky que Marinho nunca bebera.
A casa de número 39 da rua Chaves Ribeiro, bairro de São Geraldo, onde Joaquim morou com Silene e as filhas Cristina e Patrícia por longas décadas, abriu suas portas para que amigos, colecionadores e apaixonados por música, cinema e quadrinhos possam revisitar e também adquirir parte do acervo com seu expressivo conjunto de mais de 12 mil vinis, 25 mil livros, 5 mil CDs, milhares de gibis e outros objetos raros que seus olhos alcançarem.
Se tiver tempo para “garimpar”, o visitante vai descobrir tesouros como moedas antigas que enriqueceriam qualquer coleção de numismática; selos da coleção de filatelia (o maior ciúme do português), além de filmes históricos, do tempo em que Joaquim era o “rei do cinema” em Manaus –, inaugurou de uma só vez, com Antônio Gavinho, os cinemas Chaplin, Oscarito, Grande Otelo, Carmen Miranda, Renato Aragão e mais duas salas no Shopping Nova, que fechou muito cedo.
A cada degrau galgado para chegar à parte superior da casa – onde estão concentrados discos raros, filmes e gibis é uma viagem no túnel do tempo. O acervo que encontramos diante dos olhos talvez seja a mais importante coleção do gênero formada por um particular, obra de uma vida de dedicação à cultura brasileira e suas manifestações.
— Meu pai é uma pessoa que colecionou de caixinha de fósforo à placa de carros, selos, miniaturas de carrinho, revistinhas, HQs, arte erótica, 12 mil vinis, 25 mil livros. É um acervo rico e maravilhoso –, explica Patrícia Marinho, jornalista, a filha mais velha de Joaquim que decidiu montar a “Casa de Cultura Joaquim Marinho”, com o acervo do pai, na casa em que foi criada. Mas, como as coisas em Manaus são difíceis de seguir em frente por falta de apoio, Patrícia resolveu negociar peças do acervo.
Joaquim Marinho, como aqueles que o amam sabem, tem enfrentado problemas de saúde e o tratamento não é dos mais baratos. Então, porque não buscar a solução no fantástico acervo que vem sendo adquirido por velhos amigos?
— Qual o verdadeiro motivo dessa abertura do acervo de Joaquim Marinho? –, perguntei no dia em que estive lá, próximo do Natal. Enquanto arruma telas que deram origem a capas de LPs e cartazes de filmes, Patrícia explica que primeiro a família tentou abrir a casa, mostrar para essa nova geração, que hoje visita o espaço, o que foi o trabalho de Joaquim Marinho. Uma pessoa que colecionava tudo que encontrava pela frente, em sua longa jornada de radialista jornalista, empresário de cinema e agitador cultural.
— É um acervo rico e maravilhoso. Há um ano que a Casa de Cultura está aberta, está funcionando com eventos culturais, com exposição dessas coleções, e agora nós resolvemos botar a venda uma parte desse acervo para que os colecionadores possam levar, possam ter em sua casa, possam ouvir. Uma forma de não deixar os discos aqui mofando, porque é um acervo muito grande. É claro, também, que as peças estão sendo comercializadas “para obter ajuda financeira”.
— Mas é mais para deixar um pouco desse legado de Joaquim Marinho para as novas gerações –, diz a jornalista.
Visitar a Casa de Cultura Joaquim Marinho é reviver uma época de ouro da cultura amazonense, em plenos anos de chumbo. É resgatar o que foram os cinemas de rua, o que foi a Mostra de Cinema, a Loja Ponto – a loja de discos de melhor qualidade de Manaus. Afinal, onde era possível ouvir Beatles, Joan Baez, Rolling Stones, Elvis e Bob Dylan naquela época? É lembrar “Blue Moon” anunciando no rádio que Marinho estava chegando para apresentar o programa Zona Franca, o que fez por mais de 40 anos.
— Desde os 15 anos de idade que o Joaquim Marinho é radialista. Foram oito salas de cinema de rua. Teve estreias no Cine Chaplin, que chegaram a fechar a avenida Joaquim Nabuco. Às vezes, o filme não tinha nem tanta expressão, mas com aquela movimentação que ele fazia, com show de break na rua, com campeonato de patins, o tubarão pintado na frente pelo Marious Bell, tudo isso fez uma geração ter essa amostra. Era cultura. O pai sempre foi cultura, turismo e teatro! – lembra Patrícia, confirmando que a frase de que “o presente e o futuro não podem apagar o que a memória não consegue esquecer”.
ENTREVISTA:
Joaquim Marinho nasceu no Porto, Portugal, em 1º de maio, Dia do Trabalho, de 1943. E veio para Manaus ainda garoto, com 11 anos de idade. “O pai nunca deixou de ser um curumim. Um curumim lusitano”, comenta a filhota Patrícia.
Blog do Mário Adolfo – Qual o estágio do problema de saúde do Joaquim Marinho, hoje?
Patrícia Marinho – O pai está com 75 anos e tem Alzheimer há mais ou menos uns 6 anos. Uma depressãozinha, levou uma queda, machucou uma perna. É diabético, teve um probleminha de coração e colocou 3 stents. Mas é o Alzheimer que está machucando mais a gente. É ver o pai, que foi uma pessoa tão irreverente, tão falante, que preenchia o ambiente quando chegava, estar hoje tão caladão. Mas ele está presente em nossas vidas. Está morando conosco numa outra casa, não mais aqui no famoso Beco Chaves Ribeiro. Mas o pai está com a gente, está bem, precisa da visita de amigos também. Isso é bacana. Vocês que viveram uma época e tantos momentos juntos, irem lá visitar, conversar, levar um livro, levar um disco, ouvir uma música com ele. Ele está ainda com a gente, então vamos curtir esse momento dele.
BMA – Como foi a experiência da Casa de Cultura Joaquim Marinho. O objetivo é uma Fundação?
Patrícia Marinho – Não é ainda uma fundação documentada. É um ambiente que a gente está mantendo aberto. Arrumei uma coisinha aqui, outra ali e abri a casa. Estamos abrindo para eventos pontuais. Às vezes show no final de semana. Então, se você tem um lançamento e quer fazer aqui na Casa de Cultura, a gente abre a casa. Eu tenho a estrutura de bar, de lanches, de petiscos e aí a gente faz o seu evento. Em novembro, fez um ano que a gente abriu a Casa de Cultura. Fizemos um evento agora começo de dezembro, só com tocadores de vinis, vários DJs, colecionadores apaixonados estavam aqui para ouvir o som só dos bolachões. Foi um evento bem legal, bem diferente.
BMA – O que o seu pai diria nesse momento político que o Brasil está passando?
Patrícia Marinho – Aquele jeitão dele, né. Complicado o que a gente está vivendo, hoje. Eu acho até bom ele não está sabendo muito o que está acontecendo. Mas eu tenho certeza que ele continuaria o brigão de sempre por Manaus e pela Zona Franca. Sempre brigão por essa cidade, por esse estado, mesmo sendo português. Eu tenho certeza que ele estaria brigando para manter os prédios. Ele nasceu no Porto, veio para cá com mais ou menos 11, 12 anos, eram meninos. Ele nasceu em 1º de maio, Dia do Trabalho de 1943. O pai não deixa de ser um curumim. Um curumim lusitano.
BMA – Você não pretende continuar fazendo o programa dele de rádio, que todo mundo sente falta? Você tem informação, cultura e estilo para isso.
Patrícia Marinho – Pois é. É uma ideia. #FicaaDica. (risos)
BMA – Você tem ideia de quantos discos, quantos livros?
Patrícia Marinho – Eu fiz esse levantamento. Na verdade, eu não, a Secretaria de Cultura fez esse levantamento pra gente. É que, ano passado, chegamos a oferecer pro Governo do Estado fazer a compra do acervo. Na época, era o governador anterior, o José Melo. O Robério Braga estava vendo isso. Mas acabou não dando certo. O governador foi cassado. Entrou o David (Almeida), mas ele não teve tempo de negociar e o Robério saiu da secretaria.
BMA – Como você consegue manter isso aqui? Com que dinheiro?
Patrícia Marinho – Com dinheiro próprio. Mas tem sido um sufoco. Estamos precisando realmente de ajuda, por isso o apelo para que venham, divulguem e façam eventos aqui na casa.