O jornalista Umberto Calderaro, o lendário criador de A Crítica, pensava, respirava, sonhava e degustava jornal 24 horas por dia. Em suas veias corria tinta e seu pensamento estava conectado diretamente com a redação. Chegava quase sempre às 10h da manhã e só deixava seu gabinete por volta das 22 h, depois de saber qual seria a manchete da edição do dia seguinte. Sabia, de fato, fazer jornal e dificilmente interferia no trabalho do diretor de redação. Só quando percebia que o apelo jornalístico estava meio forçado ele pegava o velho interfone. E aí quem agia não era o empresário, mas o jornalista que, na juventude, correu atrás de notícias em O Globo, do Rio de Janeiro.
— Nos dias de plantão eu chegava a dormir sobre as bobinas de papel na impressão, contava, orgulhoso, para os “focas” (repórteres iniciantes) que reclamavam para sair mais cedo. Quando acontecia da manchete não estava “com sal”, ele telefonava pro o editor:
— Procura outra manchete. Essa aí tem que sair na “cesta”!
— Sexta página? – perguntava o editor,
— Não. Cesta de lixo!…
Naquela época, metade dos anos 1970, quando entrei no jornal ainda estudante de jornalismo na UFAM, A Crítica não circulava às segundas-feiras. Como estava sempre pensando na frente, Umberto Calderaro chegou na redação certa vez com a grande novidade.
— A partir da próxima semana, quero o jornal circulando também às segundas-feiras.
Os jornalistas chiaram. “Ih, lá se vai nossa cervejinha de domingo!”; “E o tambaqui com a família!”; “E as tardes de Rio-Nal no Vivaldo Lima!”. Naquele tempo, a redação era formada por um time da pesada – Leal da Cunha, Flaviano Limongi, Belmiro Vianez, Carlos Zamith, Miranda (cartunista), Mário Monteiro, Manoel Lima, Mário Jorge Costa, José Veríssimo, Flávio Assem, Messias Sampaio, Leopoldo Sampaio, Floriano Lins, Hermengarda Junqueira, Beth Azize, Mário Antônio Susmman, Gil, Baby Rizzato, Couto Rodrigues, Flávio Seabra, Sebastião Assante, Antônio Menezes, Antônio Amaranto Epitácio Almeida, Agnelo Oliveira e Jorge Estevão. E nós, os primeiros universitários de jornalismo a habitar uma redação – Plínio Valério, Cláudio Barbosa, eu, Flávio Assem e Paulo França.
Para serenar os ânimos, Calderaro resolveu dar um “cala boca” ao pessoal da redação e da impressão. “Cala boca” era o terno usado para definir “uma grana por fora”, na época, uma espécie de gíria da redação.
— Isso vai tornar o jornal mais competitivo, cambada! Vocês vão sacrificar o domingo, é verdade, mas, em compensação vou pagar o “Domingão” –, propôs o velho homem de imprensa, criando o termo para o dinheiro das horas extras trabalhadas aos domingos. Todos, é claro, ficaram satisfeitos. Afinal, o “domingão ” dobraria o valor da jornada de trabalho. Muitos começaram até a abrir crediário por conta do tão propagado “domingão”. Outros já nem andavam mais pendurando cerveja no bar do Carmona. Estavam tomando mesmo era whisky “Passaport”, que era ruim, mas era whisky.
Então, o jornal foi saindo às segundas, E com os resultados das rodados do futebol e as manchetes de polícia dos fins de semana, passou a vender mais do que farinha seca. Mas, como toda história tem um porém, veio o envelope grampeado com o salário do primeiro mês e nada do “Domingão”!.. Veio o envelope com o pagamento do segundo mês e… nada do “Domingão”!… A redação começou a se inquietar.
— Calma, gente. É que essa decisão veio muito em cima da hora, preciso refazer a folha. Mês que vem sai! –, prometia Bené Goes, o diretor financeiro do seo Umberto, dando voz de comando a seo Pires, o chefe do Departamento Pessoal, que hoje chamam RH.
— Pires, rapaz, não esquece o “Domingão” da redação, quem trabalha tem que receber, ora bolas!
Mas aí veio o terceiro mês e nada de sair a gratificação do “Domingão”. E como em redação de jornal se faz piada até com a própria desgraça – todas são assim, em qualquer parte do mundo –, a rapaziada se reuniu e, batucando na mesa, compuseram uma marchinha carnavalesca fácil de cantar, em homenagem ao seo Calderaro e ao jornal de segunda-feira. Dizia mais ou menos assim:
— O Calderaro, o Calderaro/ Nosso amigo pra xuxu/ inventou o Domingão, inventou o Domingão pra botar no nosso cu! (bis).
Foi um sucesso. Naquela época as mesas eram de aço, da Facit. Uma batida na lateral era o suficiente pra fazer um barulhão dos diabos. E com eco. Por isso, bastava alguém dá a primeira porrada na lateral da mesa e a redação inteira cantava. Do chefe de redação ao servente : “O Calderaro, o Calderaro/ nosso amigo pra xuxu/ inventou o Domingão/inventou o Domingão/ pra botar no nosso cu!”
Já tinha neguinho querendo sair com esse enredo no “Manchetão”, o bloco carnavalesco do jornal criado pelo próprio Calderaro e pelo jornalista Ulisses Paes de Azevedo. Numa certa tarde de domingo, por vota das 14h, com todo mundo trabalhando a contragosto, meio de ressaca, alguém bateu na lateral da mesa Facit e gritou:
—Vamos lá, todos comigo!
E, em coro, os jornalistas de plantão atenderam ao apelo:
— O Calderaro, o Calderaro/ Nosso amigo prá Xuxu…
Naquele tempo a entrada da redação ficava pela rua Lobo D’Almada, no Centro de Manaus. A redação tinha uma porta de mola – que nem aquelas dos saloons dos filmes do velho Oeste –, e as mesas ficavam quase todas de costas para a entrada. No auge da algazarra, silenciosamente, a porta se abriu e ninguém percebeu, até porque a redação do jornal estava a maior zorra, mergulhada na marchinha:
— “…inventou o Domingão/ inventou o Domingão pra botar no nosso cu!…
Nesse exato momento, uma voz escrachada explodiu na redação:
— Cambada de filhos da puta! Vou demitir todo mundo!
Era o próprio Umberto Calderaro, que ouvira tudo e ficara furioso.
Na sexta-feira saiu o envelope, mais gordo, com o pagamento dos três meses do “Domingão”. E a partir daquele dia nunca mais houve atraso. No carnaval daquele ano, no desfile do “Manchetão”, a marchinha do “Domingão” ou “Nosso amigo pra xuxu”, foi censurada. O Mário Monteiro, editor de Nacional e compositor nas horas vagas, fez outras às pressas, que não ficou lá essas coisas, mas o Calderaro gostou: “De mãos Dadas com o Patrão”.