A morte de pacientes por falta de oxigênio em Manaus e os fracassos em série do planejamento federal para aquisição e distribuição de vacinas contra a Covid-19 deram mais solidez ao embasamento jurídico passível de ser usado para abertura de um processo de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
A análise das regras da Constituição e da Lei dos Crimes de Responsabilidade (1.079/50), os dois mecanismos jurídicos cabíveis, mostra a possibilidade de enquadramento de vários atos e omissões de Bolsonaro e do governo no enfrentamento da doença que já causou a morte de mais de 210 mil pessoas no país.
O jornal Folha de S.Paulo compilou ao menos 23 situações em que Bolsonaro, em seus dois anos de governo até aqui, promoveu atitudes que podem ser enquadradas como crime de responsabilidade, e que vão da publicação de um vídeo pornográfico em suas redes sociais no Carnaval de 2019 aos reiterados apoios a manifestações de cunho antidemocrático.
No caso da pandemia, dos oito especialistas ouvidos pela reportagem, sete apontam a garantia social da saúde da população como a principal regra violada pelo governo. A Constituição lista em seu artigo 85 os atos do presidente que configuram crime de responsabilidade. Entre eles está os que atentam contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais -a saúde estando no último grupo.
A Lei dos Crimes de Responsabilidade também define ser crime de responsabilidade violar "patentemente" os direitos sociais. Diferentemente de crimes comuns, esse tipo de infração recai em um grupo restrito de pessoas, como presidentes, prefeitos, ministros de Estado e ministros do Supremo Tribunal Federal, e é o que dá base jurídica a pedidos de impeachment.
"Não resta a menor dúvida de que o presidente Bolsonaro atentou, em reiteradas oportunidades, contra o direito à saúde", afirma Elival Ramos, professor titular de direito constitucional da Faculdade de Direito da USP e ex-procurador-geral do estado de São Paulo.
"Quando a gente olha uma atuação deliberada, reiterada, coordenada, uma ação 'pró-pandemia', temos claramente um crime de responsabilidade, uma vez que o governo está agindo completamente, e não eventualmente, fora do esquadro constitucional", reforça Eloísa Machado, professora de direito na FGV-SP.
Ela afirma ainda que no caso de Manaus "há uma atuação intencional do governo federal que gerou como consequência imediata a morte de pessoas por asfixia". A ação se soma a medidas de boicote à vacinação, alinhamento a movimentos antivacina e recomendação de medicamentos que não têm comprovação científica.
Conforme a Folha de S.Paulo revelou em diversas reportagens, o governo soube com antecedência e ignorou alertas da iminência do colapso de oxigênio em Manaus. Ao mesmo tempo, montou e financiou força-tarefa para pressionar a cidade e médicos do Amazonas a receitar medicamentos não respaldados pela comunidade científica, como a cloroquina e a ivermectina, no que chama de "tratamento precoce".
O Ministério Público Federal no Amazonas instaurou inquérito civil para apurar possível improbidade administrativa. "Percebemos que essa campanha, que seria incentivada pelo Ministério da Saúde, teria acontecido no momento em que já se vislumbrava uma possível e grave falha de abastecimento de oxigênio", afirma o procurador da República José Gladston Viana Correia, um dos responsáveis pela investigação.
"Houve uma comitiva do Ministério da Saúde até Manaus [chefiada pelo ministro Eduardo Pazuello]. Sabemos que os recursos públicos e humanos são escassos, então verificaremos quais foram as prioridades eleitas e por que se optou, naquele momento de falta de suprimento básico ao funcionamento das Unidades Básicas de Saúde, por se fazer uma campanha desse teor junto a médicos que já estavam naquela situação de pressão", acrescenta Correia.
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