O jornalismo nos leva a lugares que você jamais imaginaria que pudesse estar um dia. Até mesmo a entrevistar o porta-voz de Lúcifer, como aconteceu comigo naquele dia 29 de setembro de 1995, quando eu escrevia uma série especial para o EM TEMPO, que chamei de ‘A Indústria da Fé’, para esmiuçar a forma não muito ética como os vários segmentos religiosos vinham arrancando dinheiro de pessoas inocentes usando da má fé e usando o nome de Jesus. Mergulhei fundo na igreja católica, evangélica, umbanda, candomblé, despachos à meia-noite, nas encruzilhadas e até no lucrativo comércio de venda de velas. Tudo feito em nome da fé e do dinheiro.
Mas nada se comparou ao dia em que estive frente a frente com um cidadão Alagoano que, sentado em uma espécie de trono e coberto com uma capa de cetim vermelho, me disse, olhando nos olhos, que conversava com o demônio. O que me levou até ele foi uma pequena notinha publicada no canto da pagina de classificados. “Desfazemos casamentos, falimos empresas e praticamos o vodu. Tens algum inimigo que queiras destruir”? Então, converse conosco. Telefone tal…” Recortei o classificado, chamei o fotógrafo Edinaldo Silva e fomos atrás do homem.
Para um estranho no ninho, o lugar assusta. À entrada do terreiro de magia negra, dois crânios de bode fincados em um tridente de ferro avisam que se está penetrando em terreno proibido a curiosos. Mais à frente, já no barracão, estatuetas de Belzebu, Raia Padilha e de Exú Tranca Rua estão postadas ao lado de uma mesa coberta por uma tolha de cetim em preto e vermelho. Sobre a mesa estão postados búzios, circundados por colares de miçangas coloridas.
É a primeira vez que um jornalista entra no endereço de número 404 da rua Walter Mestrinho, bairro do Japiim 2. O nome do local arrepia aos que temem o sobrenatural: Templo de Belzebuth – deformação do nome de uma divindade filistéia ou cananéia: Baal Zebub ou Baal Zebul ou vulgo Belzebu, Príncipe dos Demônios. Aqui, quem reina é Lúcifer através da magia negra milenar desenvolvida pelo maranhense Ribamar Ramos, ou melhor, Odé-Rani, como foi batizado na seita. Aos 28 anos, Ribamar comanda (naquela época), o único templo de quimbanda de Manaus, que trabalhava diretamente com entidades do mal. Embora garantisse que também fazia “trabalhos para o bem”. No entanto, o teve a ousadia e coragem de publicar um anúncio em jornal onde diz claramente que pratica o vodu, amarrações, faz separações, vinganças, cura impotência sexual (ainda não tinha o Viagra), doenças desconhecidas, falências e infertilidade.
O anúncio avisa que as consultas são feiras com Exú-Caveira e Maria Padilha. E ,“dependendo de seu merecimento, soluções em sete dias”. Também adverte ao desavisados que “não atendemos curioso ou céticos. Favor procurar apenas se tiver certeza do que quer”.
Aos primeiros passos, uma seguidora de Ribamar, Maria Batista, manda que os repórteres esperem. Pai Ribamar entra cinco minutos depois, vestido a caráter com turbante estampado e túnica do mesmo tecido brilhante. No braço, um reluzente relógio de ouro e no dedo um anel exibe um brilhante ofuscante. Ao observar a movimentação do fotógrafo Edinaldo Silva, o porta-voz de Lúcifer irrita-se.
— Nada de fotos. Só depois que eu souber o teor da entrevista –, avisa.
Ribamar, ou Odé-Rani é um homem de feições finas. Tem nariz afilado, dentes brancos e perfeitos, corpo atlético, pele limpa e bronzeada. Esta é a primeira entrevista que ele se dispõe conceder a um veículo de comunicação. Para concordar com a pretensão do jornalista de entrevista-lo, faz o repórter prometer que será à base de perguntas e resposta. “Ping-pong”, como chamamos na linguagem jornalística. Nada de interpretações, narrativas de duplo sentido ou palavras nas entrelinhas. O trato está feito. Vai começar a entrevista. Ligo o gravador.
— O senhor tem algum nome religioso?
— Pode me chamar de Odé-Rani.
— O que quer dizer?
— De acordo com o ritual que eu fiz para que pudesse ser iniciado no trabalho, recebi um nome que na seita nós chamamos de “orancol”, que anula o nome carnal. Assim passei a ser chamado Odé-Rani, só para as pessoas da seita.
— Mas o nome tem significado?
— Não posso revelar.
— Tudo bem fale só o que o senhor pode revelar. Como é o nome de sua seita? É quimbanda?
— Na verdade, eu fui iniciado no candomblé e passei a cultuar quimbanda, o lado mais forte que se chama magia negra.
— O que é quimbanda?
— A quimbanda é a parte onde a gente cultua os espíritos mais caídos. No caso, os demônios, os Exús de encruzilhada, os Exús de cemitérios. Os Exús de caminhos abertos. Em todas as partes do mundo – localidades, rios, cachoeiras —, existem os demônios que tomam conta daqueles locais. Então, a quimbanda ensina a cultuá-los, a chegar próximo a eles. A invocá-los e conseguir o que as pessoas querem.
— Esse demônios são o diabo?
— Diabo fica muito pesado. Eu prefiro tratá-los por Exús. Existem os Exús elevados, que são batizados, têm nome. No caso, a mentora que trabalha aqui conosco se chama Maria Padilha, ela é a pomba-gira. E o mentor se chama Tranca-Rua das Almas, que é o Exú.
— O senhor faz trabalho para o mal, para prejudicar alguém?
— Olha, as pessoas interpretam mal a magia negra. Não é tudo isso…
— Mas esta entrevista é para colocar tudo a limpo, revelar e desmitificar alguns pontos que leigos, como eu, não conseguem entender como isso funciona e até sentem receio dessas coisas.
— Magia quer dizer misticismo. Negra vem dos negros africanos. Ela já existe há mais de 3 mil anos. Os Exús não são totalmente maus. Eles são entidades totalmente diferentes dos orixás, dos santos, das entidades que existem aqui no Amazonas como caboclos, pretos-velhos, Erê, etc. Os Exús são diferente, são entidades mais geniosas, tinhosas e que vivem mais aqui com a gente, no plano material, do que no plano espiritual. Então, eles fazem mal. Isto é, nós fazemos o mal, dependendo da pessoa.
— E acaba mesmo com a pessoa?
— Quem pega a maior carga do mal não somos nós que executamos e nem a vítima, mas a pessoa que pede, aquela que encomenda o trabalho.
— O senhor explica isso para os “clientes” que lhe procuram para fazer mal a alguém?
— Explicamos. Todo mal é dividido ao meio. É metade para quem está pedindo e metade para quem é o alvo.
— E em relação ao senhor, que faz serviço, o mal também não volta?
— Não, não… Eu sou apenas o veículo. Uma ponte que liga as pessoas às entidades.
— Quantas pessoas lhe procuram por dia?
— Uma média de seis a sete pessoas, diariamente.
— O senhor cobra quanto por consulta?
— Olha, atualmente eu cobro R$ 20,00 (R$ 72, na moeda de hoje). Com isso a pessoa tem direito a jogo de búzios, carta e vidência. No caso da alta magia, a gente prefere o jogo de búzios.
— E em caso de trabalho especiais, como vingança, por exemplo?
— Aí também joga-se primeiro búzios.
— E despacho em encruzilhadas, o senhor também faz?
— Aí já parte mais pelo caminho da umbanda. O que é diferente da magia negra, da quimbanda. Na umbanda, eles tranakham em encruzilhadas. Aqui a gente faz sacrifícios para os nosso demônios.
— O senhor trabalha para o bem?
— Também…
— Dá para viver só de magia negra?
— Na realidade, o anúncio que nós colocamos no jornal não é para obter ganhos materiais, pessoais. Aqui é uma sociedade religiosa. Você vê que no barracão (aponta pra o que está em volta) falta muita coisa. Então, nós queremos ganhar dinheiro para terminar a construção do Centro de Magia Negra.
— E vodu, o senhor também faz, não é?
— Vodu é uma magia africana. É uma magia forte e, sobre esta parte, eu prefiro não falar.
— Tudo bem…
— É porque vodu a gente ataca as pessoas pessoalmente através de bonecos e algumas invocações.
— Quando o senhor sentiu que teria que sair do candomblé e se dedicar a esse caminho de magia negra, que é tão discriminado?
— Muito discriminado…Eu me iniciei no candomblé e sou médium…, então eu tenho minhas entidades. E essas entidades de esquerda começaram a se manifestar mais que as outras.
— Se manifestar como?
—Incorporar.
— Como aconteceu? O senhor estava num lugar e, de repente, de uma hora para outra, elas começaram a baixar?
— Não. Não é assim. No meu caso, eu comecei a atender as pessoas que me procuravam e essas entidades vinham e resolviam o problema. Então, eu me apeguei mais a elas, comecei a conhece-las melhor.
— Quem são “elas”?
— No caso, a minha Exú é Maria Padilha das Almas.
— Quando incorpora, o senhor muda a voz?
— Muda tudo…
— Pode falar sobre isso?
— Isso eu posso. A incorporação muitas vezes é confundida. É como um pesadelo.
— (Interrompendo) Ela é uma mulher. O senhor age como mulher?
— Não. Ela é uma mulher, mas Exú não tem sexo definido. É só um simbolismo.
— Mas Exú usa o senhor como veículo.
— Isso. Na verdade me usa como “aparelho”.
— Com quantos anos o senhor começou a perceber que poderia trabalhar com o demônio?
— Sou natural de São Luís do Maranhão e minha avó também era mãe de santo. Ela trabalhava com uma linha completamente diferente da minha, mas eu comecei a desenvolver minha religiosidade na linha dela, tipo catimbó, curandeirismo. Com nove anos comecei a incorporar. E eles vinham e diziam o que eu deveria fazer.
— Como o senhor reage em relação à discriminação que existe por parte das outras linhas em relação à sua?
— É como eu te falei. Por isso eu perguntei quais seriam as perguntas. A gente quase não se mistura muito. A umbanda fica para lá, o candomblé para cá, a quimbanda no seu lugar. Mas a discriminação não existe entre nós. Existe, sim, em relação a outra religiões, tipo igreja Universal, Católica, Crente, que são pessoas que acham que a gente mexe com o demônio, que faz pacto, por isso discriminam.
— Mas o senhor tem um pacto. E esse pacto é com o demônio, não é?
— Muitas pessoas ligam para cá perguntando sobre aquele pacto do antigo livro de são Cipriano, aquele pacto do demônio, de entregar a alma. Mas não tem nada a ver.
— Como é esse pacto?
— O pato que a gente faz é uma obrigação. Vamos dizer que alguém me procura porque precisa de ajuda no seu negócio. Eu faço invocações e se dar obrigações àquela entidade, ela vai ajudar a resolver aquele problema.
— E por que o uso constante de crânio de bode?
— Antigamente existiam as missas negras que eram o Sabaat, onde o demônio era representado através do bode. Tudo que a gente mexe na quimbanda o bode tem o papel principal. Ele traz a força, o poder, o axé, o segredo da gente.
— O senhor sacrifica bode nos rituais de seu terreiro?
— Pontinhos, pontinhos…
— A quimbanda tem mesmo contato com o demônio?
— O demônio a que você se refere é o Lúcifer?
— Sim…
— Tenho sim. Só que Lúcifer para nós é o rei, é o patrão maior. Por isso os contatos são mais através de seus escravos, aqueles demônios que têm o poder incorporar e vir à terra. Mas, contato direto com Lúcifer nós não temos.
— O senhor acredita em Deus?
— Acredito.
— E como o senhor lida com essa crença em Deus e ao mesmo tempo cultua o demônio?
— Deus é o ser Supremo. Foi ele que criou Lúcifer. Então, eu consigo dividir essas duas coisas sem criar conflitos, grilos. Faço invocação e posso sentir a força emanada de Lúcifer.
— Força física ou espiritual?
— Força espiritual. Agora mesmo ele está aqui. Você pode não estar sentindo, mas eu estou. Ele está aqui e eu o consultei para saber se poderia dar esta entrevista. Ele concordou e eu sei que vai sair só o que eu falar.
— As pessoas lhe procuram com que tipo de problemas?
— O que mais tem acontecido aqui em Manaus são problemas de casamento em crise e relacionados a negócios. Empresas falidas.
— E impotência sexual?
— Esse é outro problema que tem trazido muita gente por aqui.
— E o senhor tem mesmo tratamento para todo tipo de problema? Até para esse?
— Sim. Mas primeiro procuramos saber de onde eles vêm. Às vezes foram feitos por outros trabalhos e temos que desmanchá-los para depois fechar o corpo da pessoa.
— Voltando àquela pergunta que o senhor não respondeu e deixou no ar com a resposta “pontinhos, pontinhos”. O senhor sacrifica bode aqui ou não?
— Sacrifico. O sacrifício de animais existe ate na Bíblia.
— Uma vez por semana?
— Depende do número de clientes.
— Qual a sua meta como pai de santo e praticante de quimbanda?
—Completar o meu desenvolvimento, praticar muito o bem, praticar muito o mal para chegar até aonde eu quero chegar.
— E aonde o senhor quer chegar?
— A um karma espiritual muito elevado, para quando eu passar daqui para o outro lado eu possa chegar ao lugar aonde eu quero chegar.
— Esse lugar é o inferno?
— Pontinhos, pontinhos…
* Nota do Autor: Naquele ano, com a série “A indústria da Fé”, ganhei o Prêmio Caixa Econômica Federal de Jornalismo Social de 1995.