Reportagem do jornal Folha de S. Paulo mostra que no Amazonas, uma das cidades mais afetadas pela pandemia no mundo, a cloroquina ainda é realidade no tratamento da Covid-19.
Em fevereiro, a paciente Jucicleia de Sousa Lira, 33, que lutava contra a doença no Instituto da Mulher e Maternidade Dona Lindu, hospital público estadual, passou por nebulização com cloroquina e enviou um vídeo aos parentes mostrando o tratamento.
Foi apenas assim que o marido descobriu que sua mulher, em estado grave e dias após um parto de emergência, havia recebido um tratamento experimental. Mas, em 2 março, a técnica em radiologia morreu, 27 dias após o nascimento do filho único. O hospital informou à família que a causa foi infecção generalizada em decorrência da Covid-19.
A responsável pela nebulização da hidroxicloroquina e pela viralização do vídeo é a ginecologista e obstetra paulistana Michelle Chechter. Ela atuou em Manaus com o marido, o também médico Gustavo Maximiliano Dutra.
O viúvo diz que, durante as conversas no hospital, Chechter não o consultou sobre a nebulização ou o vídeo.
Ele só descobriu que a esposa havia assinado uma autorização ao ser informado pela Folha, em 8 de abril. São três parágrafos curtos com quatro erros gramaticais e de grafia.
Ali, a paciente concorda que Chechter utilize a “técnica experimental nebuhcq líquido, desenvolvida pelo dr. Zelenko”.
Além disso, ela autoriza o uso do depoimento gravado na UTI e o relato do caso em uma revista científica.
No vídeo, aparentemente gravado em 9 de fevereiro, Chechter induz a paciente a afirmar que a nebulização está funcionando. Em seguida, mostra o monitor da taxa de saturação oscilando entre 87% e 95%. “Vai respirando fundo”, orienta a médica.
O “protocolo” adotado em Manaus foi criado pelo médico ucraniano-americano Vladimir Zelenko. Ele foi alçado à fama em março de 2020, quando sua defesa do uso da cloroquina contra a Covid-19 foi encampada pelo então presidente Donald Trump, de forma semelhante ao que ocorreria em seguida no Brasil.
Em abril de 2020, Zelenko se tornou alvo de uma investigação preliminar de um procurador federal por ter mentido que seu estudo havia recebido o respaldo da FDA, a agência norte-americana que regula medicamentos.
Sem ética
Para aplicar o tratamento experimental, que consiste na inalação de comprimidos de cloroquina macerados e diluídos, Chechter ignorou todas as boas práticas, segundo o infectologista Francisco Ivanildo de Oliveira, gerente médico do Sabará Hospital Infantil, em São Paulo.
“Nunca vi isso. Não sabemos quantos pacientes foram utilizados, não há termo de consentimento nem comitê ético. É até mau gosto chamar de estudo. Trata-se de um experimento mengeliano”, conclui Oliveira, em referência ao nazista Josef Mengele, que realizou experimentos letais no campo de concentração de Auschwitz.
A reportagem tentou entrar em contato com o casal por meio do Centro Médico Mazzei, em São Paulo, onde os dois trabalham. Uma funcionária respondeu, via WhatsApp: "Dra Michelle disse para deixar assim mesmo porque no momento ela está sem tempo”.
Outros casos
Relatos obtidos pela Folha afirmam que pelo menos outras três pacientes receberam nebulização mesmo sem terem autorizado. Todas morreram. Uma delas teria sido Ingrid Chaves, 32, internada com Covid-19 quando estava grávida de cinco meses.
Nesse período, a médica entregou comprimidos nas mãos dessa familiar e a orientou a dar pessoalmente a hidroxicloroquina, sob a alegação de que outros médicos poderiam retirá-la do prontuário —procedimento ilegal no país, pois o medicamento de uma pessoa internada só pode ser fornecido pelo hospital.
Para convencer a família, Chechter disse que a hidroxicloroquina tinha o apoio do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e que, por causa disso, sofria oposição política.
Para a OMS, a hidroxicloroquina oferece risco adicional para mulheres grávidas. "Embora a hidroxicloroquina tenha sido usada em gestantes com doenças autoimunes sistêmicas, como o lúpus eritematoso sistêmico, grávidas podem ter ainda mais razões para relutar em usar hidroxicloroquina para profilaxia de Covid-19”, diz a instituição.
Além do marido, Chechter também atuou em Manaus com outro médico, o professor de neurologia da UFCG (Universidade Federal de Campina Grande) Alexandre Marinho. Segundo relatos à reportagem, ele veio a Manaus com cinco alunos de graduação a convite da médica.
Secretaria de Saúde
Procurado, o secretário de Estado da Saúde, Marcellus Campêlo, só respondeu, via assessoria de imprensa, parte das perguntas enviadas por e-mail.
A secretaria se eximiu de culpa pela aplicação de nebulização em seu hospital, informando que o tratamento não faz parte dos protocolos terapêuticos da rede estadual e que "se tratou de um ato médico, de livre iniciativa da profissional [Chechter], que não faz mais parte do quadro da maternidade, onde atuou por cinco dias”.
A pasta afirma que apenas duas pacientes foram submetidas ao tratamento. Ambas “assinaram termo de consentimento”, e as informações sobre o atendimento estariam registradas em prontuário.
Entre as perguntas não respondidas estão: A secretaria denunciou o casal? A morte de Lira tem relação com a nebulização? O casal administrou hidroxicloroquina em comprimidos a quantos pacientes?
A reportagem procurou a UFCG, mas a chefia de gabinete da reitoria alegou que não houve tempo hábil para resposta. A Folha enviou e-mail para Marinho, que não respondeu o pedido de entrevista.
Também procurado, o presidente do Conselho Regional de Medicina do Amazonas, Emanuel Jorge Akel, não atendeu a reportagem.
Fonte: Folha de S. Paulo - https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/04/em-manaus-medicos-ignoram-protocolos-para-ministrar-nebulizacao-de-cloroquina-em-maternidade.shtml