Um artigo sério ou uma reportagem bem escrita, ouvindo todas as fontes, não incomodam tanto quanto uma charge. E foi justamente um jornal escrachado, que tinha em sua redação os maiores cartunistas do Brasil, que tirou os milicos do sério em novembro de 1970, em plena ditadura, onde até rir era proibido.
O jornal se chamava Pasquim e era feito por feras como Millôr Fernandes, Ziraldo, Henfil, Tarso de Castro, Paulo Francis, Ivan Lessa e Sérgio Cabral, só para citar alguns. Mas foi justamente Jaguar quem teve a ideia de cutucar onça com vara curta. Irreverente – como tem que ser um cartunista –, despojado de qualquer vaidade e sem se importar muito com o traço simples, ele fez uma montagem com o histórico quadro de Pedro Américo, Independência ou Morte. Só que, em vez do brado de Dom Pedro, o cartunista acrescentou um balão com o herói da independência gritando: “Eu quero é mocotó”.
O cartum foi publicado na edição nº 71 do Pasquim, despertando a fúria da ditadura e levando para o xilindró praticamente toda a redação do jornal. A frase, extraída da música de Jorge Ben (que ainda não era Ben Jor), já tinha mandado também para a cadeia o maestro Erlon Chaves, que defendeu a música no V Festival da Canção, onde cantou se esfregando e cheirando o cangote de bailarinas louras, maravilhosas, usando colantes da cor da pele. Esse escândalo – um negro agarrando mulheres brancas – não era visto com bons olhos pelos racistas e censores. Deu no que deu: Erlon Chaves foi retirado do palco pelos gorilas da ditadura e passou pelo menos 30 dias proibido de trabalhar.
Na época, alguns diziam que o refrão “Eu quero é mocotó” era uma referência aos tornozelos roliços das morenas. Outros, no entanto, garantem que era uma senha para pedir maconha ou encomendar “unzinho” aos traficantes. O certo é que a redação do Pasquim foi em cana, escapando apenas Henfil, Millôr, Sérgio Cabral e Miguel Paiva, que não foram encontrados. Foram eles que colocaram o jornal na rua enquanto os colegas dormiam nos porões da repressão. Com a censura braba, nem o jornal pôde publicar a prisão de seus colaboradores.

Conta o jornalista Rogério Marques que foi Chico Buarque quem batizou o sumiço dos redatores de “gripe”, em carta publicada no jornal:
— Eu queria abraçar vocês, mas não tinha ninguém aqui. Deve ser por causa da gripe. Ninguém segura essa gripe. Assim mesmo, estimo melhoras — cutucou Chico.
MEMÓRIAS DO CÁRCERE
Jaguar era tão irônico que nem mesmo na prisão perdeu o humor e, quando saiu, desmoralizou o xilindró. Ele mesmo conta como foi sua chegada à Vila Militar, na Zona Oeste do Rio, onde os outros já estavam presos:
— Era longe pra cacete! E eu ainda tive que pagar o táxi! Chegando na porta da Vila Militar, eu mandei o táxi parar. E o Sérgio Cabral pra mim:
— O que foi, mudou de ideia?
— Não, mas vamos pro boteco mais próximo!
Tomei meia garrafa de cachaça, depois voltei e me entreguei. Cheguei e pedi para falar com um oficial.
— Eu sou o Jaguar, estou sendo procurado…
— Ah, é? Prendam esse cara aí.
E lá fiquei por dois meses. Sobre a prisão, que considerou um momento tenso e perigoso, Jaguar tirou de letra:
— Foi o melhor período da minha vida. Ficava o dia inteiro sem nada o que fazer e bebia, não tomava banho, parecia um farrapo humano. Levei Guerra e Paz para ler. Mas não fui torturado. Foi um período maravilhoso. E ainda por cima com pinta de herói. Depois que a gente saiu, as moças todas estavam encantadas com a gente. Quando eu conto essas histórias, o Ziraldo fica chateado e diz: “Você desmoraliza o nosso heroísmo”. Mas foi muito bom.

Saideira
Contei essa história para traduzir às novas gerações, principalmente de jornalistas “focas”, quem era Sérgio de Magalhães Gomes de Jaguaribe, o Jaguar, que tomou a saideira e partiu neste domingo (24), aos 93 anos.
Além do humor implacável, nutria (ou sorvia) uma paixão pela boemia, um boteco e um trago.
— Ao fim de seis décadas tendo bebido o equivalente a “uma piscina olímpica” de álcool, meu fígado sucumbiu a uma cirrose avançada, acompanhada de câncer — disse ele em uma entrevista concedida aos 80 anos.
— Eu tinha tanto orgulho do meu fígado, me senti hepaticamente corneado — completaria.
Jaguar era genial. Mesmo não tendo o traço elegante e completo de Ziraldo, o humor cáustico de Henfil e a genialidade de Millôr, era considerado um dos melhores cartunistas de todos os tempos. Isso dito pelo próprio Millôr e pelo próprio Ziraldo. Desenhava de forma fácil e traduzia o cotidiano em seus balões também com a mesma facilidade. Para se ter uma ideia, começava desenhando os personagens de seus cartuns pelos pés — o que nenhum outro chargista conseguiria.
Foi Jaguar quem criou o Sig, “o rato que ruge”, símbolo do Pasquim. Aliás, foi ele também quem encontrou o nome do Pasquim depois de semanas de discussões. Como ninguém chegava a um consenso, Jaguar decidiu interferir:
— Que tal Pasquim? Eles vão nos chamar mesmo de pasquim (jornal difamador, folheto injurioso). Terão que inventar outros nomes para nos xingar.

Numa tardinha de um certo verão na Maravilhosa, eu e meu sobrinho Tágore Aryce, goiano, estávamos amassando uns chopes no Bracarense, o melhor botequim do Rio, no Leblon, quando descobrimos o Jaguar sentado numa mesa ao lado, também amassando algumas. Perdemos o registro porque esquecemos a câmera fotográfica no hotel. E, na época, Steve Jobs ainda não havia inventado o celular com câmera.
Jaguar desmoralizou todas as teorias de que “o álcool faz mal à saúde” e de que quem bebe muito tem vida curta. Morreu aos 93 anos, desenhando todos os dias. Era tão genial que o mais genial dos cartunistas, Millôr Fernandes, escreveu no prefácio de um de seus livros:
— Costumo lhe dizer, Jaguar, que com seu talento eu não estaria aqui, estaria no corredor da morte nos Estados Unidos!
Vai fazer muita falta.