O caminho das águas levava a Parintins, mas o som que tocava no barco era The Beatles, enquanto lá fora caía um toró de fazer medo.
O ano era de 1983. A convite do radialista Nelson Brilhante, retornávamos à Ilha para compor o júri do Festival de Música Popular de Parintins. Eu, o poeta e jornalista Aldísio Filgueiras e o então deputado João Pedro (PC do B). No barco, juntaram-se a nós o Clube do Samba – Pajé, Didi, Júnior, Silvinho e o maestro Cocó –, o primeiro grupo de pagode de Manaus, e mais o puxador de samba de enredo Silvinho da Portela, que iam fazer o show de encerramento do festival.
Com tantos malucos juntos, a viagem não poderia ser diferente. Uma loucura total, com muito humor, trovoadas, relâmpagos, discussões políticas, solos de guitarras e algumas garrafas de pinga com limão para suportar o frio.
No day after, parece que a Ilha estava girando e a nossa cabeça tinha sido rachada. Enquanto o Nelson Brilhante explicava as regras do festival, cutuquei o Aldísio:
– O Brilhante tem um irmão gêmeo?
– Não, por quê?
– Estou vendo dois!
Profissional sério e organizado, Nelson Brilhante nos explicou (ou advertiu?) que a coisa era séria. No festival de música se travava a mesma guerra que se travava em junho, no festival do boi, pois os compositores que disputavam o festival são os mesmos que fazem as toadas de Garantido e Caprichoso. Daí por que se repetia a rivalidade entre vermelho e azul.
– Vamos julgar com seriedade, porque qualquer vacilo pode ser fatal. Não quero ninguém linchado no palco! – avisou o organizador do festival, realizado numa única noite, quando se apresentavam as 12 finalistas.
A saída do hotel estava programada para às 19h30, pois o festival seria aberto às 20h. Às 19 horas, todos prontos para sermos levados por uma kombi até a praça, onde ficava o mesmo tablado no qual era realizado o festival folclórico, notamos a ausência de Silvinho da Portela. Corremos ao seu apartamento, no hotel Avenida, e o negão estava sentado à beira da cama.
– Vambora, rapaz. Tá em cima da hora!
– berrou, nervoso, Nelson Brilhante.
– Cadê a maconha?
– Que maconha, rapaz?
– Foi o combinado, só canto se tiver maconha.
– Se não tiver? – desesperou-se Nelson.
– Não tem show! – respondeu seco o negão.
– Ai, meu caralho, só me faltava essa – resmungou Nelson, que pediu o apoio do grupo para fazer um mutirão. O mutirão da maconha.
– Vai ser foda achar maconha uma hora dessas.
Umbora todo mundo atrás.
– Se ele quiser cola de sapateiro, eu sei onde tem – sugeriu a faxineira do hotel.
– Me respeita, mocréia! – resmungou lá dentro Silvinho da Portela.
E lá fomos nós, irmanados, à caça de maconha para o puxador de samba-enredo e de mato.
Como previu Brilhante, não foi fácil tarefa achar maconha. Até mesmo o maior consumidor de Parintins nos desanimou:
– Ih, mô irmão, em junho a rapaziada queima tudo, sabe cumequê? Em setembro, saca? É a maior escassez, morô? – Pra encurtar a história, 40 minutos depois, um assessor para assuntos de cabeça-feita apareceu com um charuto enorme, enrolado às pressas, parecia até o dirigível Zeppelin. Silvinho apertou o bichão com o indicador e o polegar e deu a primeira baforada, espalhando cinza pelo quarto inteiro:
– É da boa – disse, abrindo o sorriso branco de satisfação.

O barato só viria algumas horas depois, no show de encerramento do festival. O samba de enredo da Portela daquele ano, que Silvinho puxava com a maestria e a dignidade dos sambistas da velha-guarda, tinha um refrão que dizia assim:
No país da bola / só deita e rola / no país da bola / só quem tem dólar!…
Este seria o primeiro número de Silvinho. Entrando para aquecer a massa, os meninos do Clube do Samba estraçalharam no pagode. Lá pela meia-noite, o surdão segurou a marcação, o tamborim ficou ainda mais afinado e o repique deu sinal para a entrada de Silvinho, que, com um blazer azul e calça branca, entrou berrando com o vozeirão que Deus lhe deu:
– Poooorrrrttttteeeeeelllaaaaa!
Mas, na hora de iniciar o samba, quem disse que lembrava da letra? Sacudiu a cabeça, puxou o fio do microfone e iniciou outra vez, na tentativa de lembrar:
– Poorrteelllaaaa!
Mas nada da letra vir à mente. Resolveu apelar para os batuqueiros, que seguravam a bateria, dando tempo. Numa passagem rápida, frente aos meninos do Clube do Samba, Silvinho perguntava de passagem:
– Cumequê, porra? Cumequê, porra? – Mas os meninos também não lembravam. E Silvinho continuava andando, de um lado para o outro do palco, tentando começar tudo de novo:
– Pooorrrttteeelllaaaaa!
Mas nada. A cabeça do negão não pegava nem no tranco. E aí, na quarta e desesperadora passagem que ele dava na frente da bateria, perguntando “cumequê, porra? cumequê, porra?”, algum anjo da guarda, lá atrás, com uma vozinha tímida, soltou o verso que Silvinho buscava desesperadamente:
– No país da bola, porra!
– Ah, sim! – disse, aliviado, Silvinho e saiu cantando, serelepe, pelo tablado:
No país da bola / só deita e rola / no país / só quem tem dólar…
E fez um dos shows mais lindos e divertidos que eu já assisti em Parintins.