Um velho homem de imprensa me ensinou um dia que não basta ao jornalista captar e escrever bem. É fundamental, também, estar no lugar e certo, na hora certa. Eu posso dizer que ao longo da minha trajetória profissional escrevi grandes matérias por puro golpe de sorte. Por exemplo, tive a sorte de assistir a dois dos maiores tenores do mundo – José Carreras se apresentou em Manaus no dia 27 de fevereiro de 1996, abrindo as festividades dos 100 anos do Teatro Amazonas.
Os ingressos giravam em torno de R$ 600 por pessoa e isso acabou gerando protestos de manauaras, o que quase culminou no cancelamento da apresentação de Carreras. Mas, na condição de jornalista escalado para cobrir o evento, assisti a um dos maiores espetáculos da minha vida à base do 0800. Em 2016, outro grande momento, assisti a poucos metros de distância nada menos que outro grande monstro da música universal: Plácido Domingo, que, em 2016, se apresentou no Amazônia Live, cantando clássicos em um palco em formato de folha sobre as águas do Rio Negro.
Vejam só a sorte do repórter. Eu vi com esses olhos que a terra há de comer, a duas feras que formavam, junto com Luciano Pavarotti, o mais famoso trio de tenores do Planeta. E agora pasmem, só não vi o terceiro nome dos Três Tenores, por causa do trânsito de Manaus. Vou contar, porque essa história é muito interessante.
No dia 1º de março de 1995, por volta das 13h, redação parada, mergulhada na mesmice das notícias de rotina, quando o telefone da minha mesa toca. Leny, a telefonista de plantão avisa:
— Lívia na linha querendo falar com você.
— Manda.
Do outro uma voz conhecida me intima:
— Mário, é Lívia Mendes. Estou no Teatro Amazonas, rápido, corre pra cá que o Pavarotti tá cantando no palco!
— O quê? Ficou louca? Bebeu uma hora dessas? Isso é trote?
— Te acalma. É verdade. Vem e traz fotógrafo –, atiçou Lívia, filha do governador Amazonino Mendes.
Minha amiga não brincaria com um fato tão inusitado. Por isso, segui a risca seu chamado. Procurei um fotógrafo e todos estavam na rua. Mesmo assim, disposta a testemunhar a incrível história, saí correndo para o teatro.
O leitor deve estar achando que isso é ficção. Ou um texto de humor. Mas não é não. Pode até parecer incrível, mas o tenor italiano Luciano Pavarotti cantou no palco do Teatro Amazonas, Manaus (AM), às 13h , do dia 1º de março de 1995. Esfregue os olhos, leia com calma. Você deve estar pensando que se trata do delírio de um repórter depois de uma noitada no Bar do Armando, coisa muito comum na década de 1990. Mas não é não! Retornando do hotel de selva Ariaú Tower, Pavarotti desembarcou em Manaus às 12h40, única parada em seu retorno à Itália, que tinha exclusivamente como objetivo conhecer o Teatro Amazonas.
Do porto de Manaus, ele rumou imediatamente para o teatro, onde a coordenadora de eventos, Elene, já havia sido avisada por um telefonema e, na certa, também deve ter pensado que se tratava de trote.
Mas, ao ser cutucada por um assessor que, com coisa séria não se brinca, tratou, por via das dúvidas, de acionar um intérprete, o que não foi difícil porque lembrou de uma amiga que havia morado na Itália
Começava aí uma das mais incríveis e surpreendentes histórias que já passaram pelo palco do Teatro Amazonas, mas só que dessa vez não se tratava de nenhum tema de ópera. A história era real.
Incrédula, a intérprete rumou para o teatro e, quando ficou de cara com o monstro sagrado da ópera, também teve que esfregar os olhos achando que estava diante de uma miragem. Mas era ele mesmo, lá estava o velho Pavarotti em pele, osso e gordura, de jaqueta preta porque estava chuviscando, calça jeans e o tradicional lenço no pescoço para proteger o seu maior patrimônio, a voz.
O tenor estava acompanhado de oito amigos italianos, com quem estava hospedado há três dias no Ariaú, erguido sobre as copas das árvores da floresta amazônica. Cumprida toda a programação do excêntrico turismo ecológico, Luciano Pavarotti seguiu de barco para Manaus. Ao entrar no templo da cultura amazonense, o artista, que nasceu em Modena, Itália, não escondeu sua emoção:
— Belíssimo! Belíssimo! Belíssimo! –, murmurou, enquanto caminhava no interior do teatro, em direção ao palco. Em seguida como se não conseguisse conter a emoção, manifestou em voz alta seu desejo de cantar num dos mais famosos e belos teatros do mundo.
— Conoscere il teatro e non cantare è un peccato! (Conhecer o teatro e não cantar é um pecado), traduziu minha amiga Lívia.
Tomada de surpresa, a coordenadora do teatro sequer sabia se havia algum piano, afinado, disponível. Diante da situação constrangedora, Pavarotti voltou à carga, mais insinuante ainda:
— Se non canto ora nel bellissimo teatro, che un’altra opportunità avrò? – (Se não canto agora no teatro, que outra oportunidade terei?), traduziu outra vez Lívia, dessa vez consultando a amiga tradutora.
Orientada pela coordenadora de eventos do Teatro, a intérprete ainda sugeriu a Pavarotti que ele poderia vir cantar no teatro, no próximo ano, com a orquestra filarmônica no grande festival Amazonas de Ópera, o tenor reagiu enfático:
— No, no, no! È ora o mai più! (Não! Não! Não! É agora ou nunca) –, descartou, insinuando que que em 1996 os compromissos profissionais já estavam cheios na sua agenda.
Enquanto isso, o italiano que parecia ser seu empresário saiu à cata de um piano nos bastidores do teatro, com a ajuda do pessoal da casa. O instrumento foi encontrado, guardado sobre o palco móvel. Lá mesmo, um músico que integrava a comitiva italiana, dedilhou a introdução de uma operetta. E o velho Pavaratti apossou-se de um banco e mandou ver. Meia dúzia de pessoas privilegiadas – entre eles o pessoal da limpeza –, naquele instante, talvez os mais surpreendentes minutos da história do Teatro Amazonas. Um espetáculo particular e improvisado de Luciano Pavaotti, cuja direção foi assinada pelo destino.
No final da operetta, o tenor regou a garganta com ávidos goles de água Perrier. Em seguida, como querendo dar uma chance aos poucos mortais que, de queixo caído, não acreditavam no que estavam presenciando, fez questão de posar para uma foto feita por uma funcionária do teatro que, por acaso trazia uma Love descartável guardada na bolsa. A imagem pode não ter qualidade técnica, mas revela para a história o dia em que, numa quarta-feira de cinzas, Luciano Pavarotti cantou pela única vez no Teatro Amazonas. Foi esta foto desfocada que saiu na capa do jornal, e se não fosse ela, nem o editor e muito menos os leitores acreditariam na minha história.
Não durou mais de uma hora a passagem do tenor italiano por Manaus. Dali mesmo do teatro, ele seguiu para o Aeroporto Internacional Eduardo Gomes, de onde, às 15h, voou para a sua Itália.
Pavarotti morreu no dia 6 de setembro de 2007, aos 71 anos, em sua casa, na cidade Modena. E até hoje não foi fixada nenhuma placa no panteão da glória do Teatro Amazonas.