Texto original publicado por Carlos Gomes
O debate sobre a atuação empresarial em territórios de relevância estratégica, especialmente nas zonas de intersecção entre fronteiras energéticas e ambientais, tem ganhado centralidade nas últimas décadas. A implantação de grandes empreendimentos costuma vir acompanhada por disputas intensas em torno da legitimidade social e da governança de seus impactos, sendo a Amazônia um dos principais palcos dessa controvérsia. Nessas localidades, companhias enfrentam o desafio de compatibilizar interesses econômicos de escala global com expectativas sociais e políticas de caráter local, em um ambiente marcado por alta sensibilidade ambiental e institucional.
A literatura sobre desenvolvimento territorial e governança corporativa aponta que a capacidade de uma empresa se enraizar em contextos amazônicos não se limita à geração de valor econômico. Depende também da criação de externalidades positivas que fortaleçam comunidades e instituições públicas. Na Amazônia Ocidental, em particular, iniciativas de responsabilidade social corporativa têm se mostrado decisivas para consolidar arranjos de governança socioambiental e reduzir riscos não técnicos capazes de comprometer a sustentabilidade de projetos de grande porte [1] [2].
O caso de Silves exemplifica de maneira concreta essa dinâmica. Ele mostra como a permanência de grandes empreendimentos na região requer a construção de vínculos sólidos com a comunidade e com o poder público local. Vínculos que, quando bem estruturados, podem funcionar como catalisadores de investimentos sociais e da formação de capital humano.
Do Subsolo à Prosperidade: a Virada com o Azulão-Jaguatirica

O gás natural em Silves passou a ser visto como promessa de desenvolvimento já em 2004, quando a Petrobras descobriu o Campo do Azulão. No entanto, apenas em 2018, com a aquisição do ativo pela Eneva no contexto do programa de desinvestimento da antiga operadora, o potencial da região foi efetivamente mobilizado. A empresa estruturou um projeto integrado que conectou a produção local a uma termelétrica em Boa Vista (RR), inaugurando o chamado Projeto Azulão-Jaguatirica e dando início ao ciclo de monetização dos hidrocarbonetos da Bacia do Amazonas.
Foram necessários 14 anos desde a declaração de comercialidade para que o gás começasse a gerar riqueza em Silves, município a mais de 300 km de Manaus, com pouco mais de 10 mil habitantes, e onde está localizada a planta de liquefação e produção de gás natural do Azulão. Os efeitos, entretanto, foram rápidos: entre 2016 e 2021, o salário médio local cresceu de 1,6 para 2,5 salários mínimos, e o repasse de ICMS aumentou cerca de 150%, evidenciando o impacto da atividade econômica sobre a vida da população [3]. Mesmo nesse curto intervalo de sete anos, ficou claro que se tratava apenas do começo. Atualmente, a Eneva mantém três blocos exploratórios na Bacia do Amazonas, dois campos declarados comerciais e conduz, ainda em Silves, a construção de um complexo termelétrico de 950 MW, previsto para iniciar operação em 2027, com horizonte de 15 anos de atividade [4].
Esse percurso ajuda a compreender como a presença recente da empresa no Amazonas cria as bases para investimentos sociais estruturantes, como a Escola Técnica de Silves. O projeto educacional não se configura como ação pontual, mas como parte de uma estratégia de longo prazo, alinhada à permanência da companhia no território por pelo menos duas décadas.Nesse sentido, torna-se evidente que a continuidade das operações depende de uma base social estável e da formação de capital humano qualificado, fatores essenciais tanto para a eficiência produtiva quanto para a legitimidade social, sobretudo diante do peso estratégico do Projeto Azulão 950 MW.
Coerente com as boas práticas internacionais, a Eneva instituiu recentemente um Comitê de Estratégia pautado pela noção de Licença Social para Operar (LSO). O conceito refere-se ao grau de aceitação de um empreendimento por parte da sociedade civil e das comunidades locais, aferido a partir de percepções, crenças e opiniões de diferentes stakeholders. Não se trata, portanto, de um mecanismo voltado à maximização de lucros, mas de um instrumento de proteção contra questionamentos relacionados à legitimidade, à conformidade regulatória, ou à geração de externalidades positivas. A LSO, contudo, é dinâmica e sujeita a mudanças: deve ser continuamente conquistada e renovada [5].

O interesse acadêmico pelo tema tem crescido significativamente, sobretudo em setores extrativistas, onde a sua relevância para a sustentabilidade de operações é cada vez mais reconhecida. Nesse contexto, o Relato Integrado de 2024 [6] da Eneva trouxe, pela primeira vez, uma exposição detalhada da governança interna voltada a esse objetivo — sinal de que a incorporação da LSO já não é apenas desejável do ponto de vista operacional, mas também uma expectativa explícita de investidores e observadores externos.
Internamente, a Eneva desenvolveu uma governança robusta para garantir a LSO na Região Norte, especialmente para o Projeto Azulão 950, dada a importância do empreendimento para a Companhia e para a região. Foi operacionalizado um Comitê de Estratégia LSO, (…) com o objetivo de gerar externalidades positivas para a comunidade e outras partes interessadas, mitigar riscos não técnicos relacionados à construção e proteger a operação. Também compete a esse comitê discutir estratégias para contornar desafios específicos atinentes à licença social, como impactos de fluxo migratório ou demandas específicas do poder público relacionadas à contribuição socioambiental do empreendimento.
E é precisamente nesse ponto que a criação da Escola Técnica de Silves ganha centralidade, configurando-se como um investimento que vai além da dimensão filantrópica: trata-se de uma estratégia de enraizamento territorial, capaz de assegurar mão de obra local, ampliar as oportunidades de desenvolvimento e fortalecer a LSO [7]:
“Ciente do impacto significativo de suas operações nas localidades em que está presente, os esforços da Companhia para o fortalecimento socioeconômico local acontecem por meio de iniciativas que contribuem para o empoderamento de mulheres em vulnerabilidade social, a educação e capacitação para a inserção no mercado de trabalho de jovens e adultos, e o fomento à bioeconomia”.
Formando Futuro, Fixando Território: a Escola Técnica de Silves
Em abril de 2023, o Governo do Estado, o Centro de Educação Tecnológica do Amazonas (CETAM) e a Prefeitura firmaram um memorando de entendimento que define a Escola Estadual Agobar Garcia, em Silves, como o local que será reformado para dar lugar à Escola Técnica. O objetivo manifesto era não apenas atender ao crescente setor de energia presente na região, mas providenciar mão de obra capacitada para outras potencialidades regionais. As responsabilidades assumidas pela companhia diziam respeito à reforma da infraestrutura e a montagem dos laboratórios, além da ampliação da biblioteca e da construção de um auditório com capacidade para 280 pessoas [8]. O equipamento, uma vez reformado, seria rebatizado para Escola de Educação Tecnológica e Profissional Professor Wilson Carvalho Pereira, e posteriormente doado ao CETAM, que ficaria então responsável por sua administração [9].

Nesse momento, também foi anunciado um programa de combate à evasão escolar, com a provisão de bolsas mensais de estudo no valor de R$ 1.320,00 pagas pela Eneva e pela Etam Construtora — valor próximo aos R$ 1.412,00 de abril de 2024, quando o concurso para seleção dos alunos foi lançado [10]. As vagas foram abertas para os cursos de Sistemas a Gás, Eletromecânica e Agropecuária — os primeiros em tempo integral do Estado. Foi em setembro de 2024 que a unidade passou a operar plenamente, e tem oferecido outros cursos de curta e média duração desde então.
É interessante observar como a então Diretora de ESG da companhia, Anita Baggio, incorpora em seu discurso o papel almejado para a Escola, posicionando a atuação da Eneva como propulsora do desenvolvimento local de uma forma mais abrangente do que pelo impacto econômico direto e indireto [8]:
“Colaborar e colocar nossos recursos para ajudar na qualificação desses jovens é mais uma ação que reforça o nosso compromisso de longo prazo para o desenvolvimento do interior do Amazonas. Estamos comprometidos em apoiar a formação e qualificação da mão de obra local e empenhados em ajudar a construir um legado para esta região que ultrapasse o empreendimento da empresa”.
No caso dos alunos apoiados pela Eneva, a formação contou não apenas com as aulas previstas nos projetos pedagógicos, mas também com aulas complementares de inteligência artificial e básico em programação, custeadas pela Bemol e ministradas pela Singulari, num outro momento ímpar para o estado, protagonizado por novas parcerias privadas.
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Pode-se dizer também que o esforço em evitar a evasão escolar e o subemprego entre alunos cumpriu bem seu papel. No final, 81 dos 90 alunos concluíram o curso e receberam o diploma no dia 15 de agosto de 2025, redundando numa taxa de retenção de 90%. O custo total das reformas foi superior a R$ 15 milhões. Durante a cerimônia de formatura, o Diretor-Presidente da Eneva, Lino Cançado, garantiu que parte da mão de obra formada na Escola será absorvida pela companhia durante os próximos anos [11]:
“No início da operação, a Eneva deve aproveitar parte dos formandos, e nós vamos aproveitar porque temos um programa de absorção de mão de obra local, promovendo a geração de emprego onde a empresa está. Um dos objetivos é aproveitar formandos dessa turma. Agora vocês têm uma bagagem muito maior para se destacar”.
Impactos do modelo Silves: mobilidade social e inovação institucional

É de conhecimento comum o papel facilitador da qualificação técnica na mobilidade social e no incremento de renda. Há evidência de que a qualificação técnica aumenta a renda e acelera a transição para o trabalho, com um prêmio salarial entre 21% e 25% para ocupações técnicas, e efeitos positivos também entre jovens [12]. O acompanhamento nacional do SENAI reforça o quadro: 85,6% dos egressos estavam empregados no período 2022–2024 [13]. Em outras palavras: a escolha da Escola Técnica como “carro-chefe” do investimento social da companhia na região está bem fundamentada.
Revela-se virtuoso também o modelo adotado pela Eneva em Silves para o processo de construção da Escola, equilibrando diversos interesses e estruturando uma governança transparente e uma articulação institucional, gerando impacto social para a comunidade e ganhos reputacionais e/ou financeiros para os atores envolvidos. Para os empreendedores, é uma demonstração à comunidade de que a racionalidade econômica que lhe é própria não deve ser percebida como um fim em si mesmo, mas como parceira e indutora do progresso regional. Além disso, a contratação de mão de obra local reduz custos de recrutamento e deslocamento, ao mesmo tempo em que gera capacitação para a comunidade.
Ao mesmo tempo, o Estado do Amazonas mostrou firmeza e coragem em termos de inovação institucional. Sem abrir mão do seu papel como guardião do interesse público e responsável pela administração da educação técnica e do equipamento público, o governo atuou como regulador e garantidor da política educacional ao ceder a estrutura, organizar os projetos pedagógicos e currículos dos cursos, e certificar os concluintes. Há também um importante aspecto favorável do ponto de vista financeiro: o uso de recursos do erário foi muito menor do que seria caso o Estado precisasse arcar com o custo de reforma da escola sozinho.
Esse arranjo evidencia a aplicação prática do conceito de valor compartilhado, segundo o qual a interseção entre objetivos empresariais e demandas sociais produz benefícios mútuos e sustentáveis [14]. Mais do que uma ação isolada, a experiência da Escola Técnica de Silves pode ser lida como um laboratório institucional que demonstra a possibilidade de alinhar competitividade empresarial, fortalecimento do Estado e desenvolvimento comunitário. Ao transformar um investimento pontual em plataforma de cooperação duradoura, abre-se espaço para pensar modelos replicáveis em outros contextos amazônicos e em setores distintos, onde a busca pela licença social para operar se converte em vetor de inovação e inclusão.
Lições e perspectivas: para além do caso Silves

O caso da Escola Técnica de Silves demonstra que o investimento social empresarial pode ser estruturado de modo a fortalecer a capacidade estatal, reduzir a pressão fiscal e ampliar a legitimidade social da empresa. O diferencial está em transformar a intervenção em um mecanismo sistêmico de desenvolvimento, em que o setor privado atua como fomentador e o Estado preserva sua centralidade regulatória.
Para que esse modelo seja replicado com sucesso, três condições aparecem como essenciais: governança compartilhada (que assegure transparência, corresponsabilidade e monitoramento público dos resultados); mensuração de impacto (emprego, renda, acesso a serviços ou indicadores de qualidade de vida, conforme o setor); e articulação com vocações locais (de modo que cada parceria dialogue com as potencialidades produtivas e sociais de cada município).
Assim, o que Silves ensina não é apenas como recuperar uma escola, mas como desenhar um padrão de cooperação público-privada voltado para o desenvolvimento sustentável. Em última instância, o modelo de governança de Silves pode ser uma referência para pensar novas formas de política pública no Brasil, em que o privado e o público se complementam na produção do bem-estar coletivo.
[1] VIANA, Vivian Andrade. Licença social para operar na mineração brasileira e suas relações com governança pública e corporativa. Brasília: Tribunal de Contas da União, 2020. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/licenca-social-para-operar-na-mineracao-brasileira-e-suas-relacoes-com-governanca-publica-e-corporativa.htm. Acesso em: 19 set. 2025.
[2] ALMEIDA, Rafael de; ALVES JÚNIOR, Moisés. Governança e desenvolvimento local na Amazônia: dilemas da atuação corporativa em territórios de fronteira. Revista de Desenvolvimento Regional da Amazônia, Manaus, v. 2, n. 1, p. 45–70, 2024.
[3] MELLO, Rafaela de; LOSEKANN, Luciano. A importância da exploração e produção onshore na interiorização do investimento: estudo de caso de Silves/AM e Itapiranga/AM. Disponível em: <https://ensaioenergetico.com.br/a-importancia-da-exploracao-e-producao-onshore-na-interiorizacao-do-investimento-estudo-de-caso-de-silves-am-e-itapiranga-am/>. Acesso em 18 set. 2025.
[4] Fonte: Eneva RI. Ativos. Disponível em: <https://ri.eneva.com.br/ativos/>. Acesso em 18 set. 2025.
[5] THOMSON, Ian; BOUTILIER, Robert G. Social License to Operate. In: DARLING, Peter (Ed.). SME Mining Engineering Handbook. SME, 2011, pp. 1779–1796.
[6] Fonte: Eneva. Relato Integrado 2024, pp. 94. Disponível em: <https://eneva.com.br/sustentabilidade/ri2024/>. Acesso em 19 set. 2025.
[7] Fonte: Eneva. Relato Integrado 2024, pp. 31. Disponível em: <https://eneva.com.br/sustentabilidade/ri2024/>. Acesso em 19 set. 2025.
[8] Fonte: Eneva. Eneva e Governo do Estado do Amazonas anunciam escola técnica no interior do Estado. Disponível em: <https://eneva.com.br/noticias/eneva-e-governo-do-estado-do-amazonas-anunciam-escola-tecnica-no-interior-do-estado/. Acesso em 19 set. 2025.
[9] Fonte: Centro de Educação Tecnológica do Amazonas. Cetam abre inscrições para cursos técnicos de tempo integral em Silves com bolsa de R$ 1.320. Disponível em: <https://www.cetam.am.gov.br/cetam-abre-inscricoes-para-cursos-tecnicos-de-tempo-integral-silves-com-bolsa-de-r-1-320/>. Acesso em 19 set. 2025.
[10] Fonte: Portal Em Tempo. Eneva forma primeira turma da escola técnica de Silves. Disponível em: <https://emtempo.com.br/421085/amazonas/eneva-forma-primeira-turma-da-escola-tecnica-de-silves/>. Acesso em 19 set. 2025.
[11] Fonte: Agência Amazonas. Governador Wilson Lima destaca geração de emprego e renda com formação das primeiras turmas do Cetam em Silves. Disponível em: <https://www.agenciaamazonas.am.gov.br/noticias/governador-wilson-lima-destaca-geracao-de-emprego-e-renda-com-formacao-das-primeiras-turmas-do-cetam-em-silves/>. Acesso em 19 set. 2025.
[12] Fonte: IPEA. Ensino técnico proporciona salários até 24,9% superiores aos de outros trabalhadores. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/categorias/45-todas-as-noticias/noticias/13705-ensino-tecnico-proporciona-salarios-ate-24-9-superiores-aos-de-outros-trabalhadores>. Acesso em 18 ago. 2025.
[13] Agência de Notícias da Indústria. Com formação do SENAI, mais de 85% dos ex-alunos de cursos técnicos estão empregados. Disponível em: <https://noticias.portaldaindustria.com.br/noticias/educacao/com-formacao-do-senai-mais-de-85-dos-ex-alunos-de-cursos-tecnicos-estao-empregados/>. Acesso em 18 ago. 2025.
[14] PORTER, Michael E.; KRAMER, Mark R. Creating shared value. Harvard Business Review, v. 89, n. 1–2, p. 62–77, 2011. Disponível em: <https://hbr.org/2011/01/the-big-idea-creating-shared-value>. Acesso em 19 ago. 2025.