Em Manaus, terreiros e templos de religiões afro‐brasileiras, espaços sagrados para comunidades negras e praticantes, se encontram em proximidade com áreas identificadas como de risco geológico, inundação, alagamento e erosão, segundo análise inédita realizada com base no mapeamento do Serviço Geológico do Brasil (CPRM).
No contexto da Semana da Consciência Negra, o achado lança luz sobre uma dimensão pouco debatida, a vulnerabilidade territorial e simbólica desses espaços de fé.
"Quando um terreiro é erguido em área de risco, todo esse universo fica ameaçado", afirma a sacerdotisa Agonjaí Nochê Flor de Navê, do Templo de Tambores de Mina Jejê-Nagô Xwê Ná Sin Fifá, zona norte da capital, ao comentar os impactos que a insegurança territorial traz à vida religiosa.
“O território é vivo e responde ao cuidado que damos a ele e ao descaso do poder público”, acrescenta a sacerdotisa.
O relatório “Mapeamento das áreas de risco geológico da zona urbana de Manaus (AM)”, elaborado pela CPRM, aponta centenas de setores da capital amazonense classificados como alto e muito alto risco para desastres como inundações, alagamentos, erosão, deslizamentos e enxurradas.
Paralelamente, com a ajuda do levantamento realizado pelo Atlas ODS Amazônia e o Instituto Ganga Zumba, foi elaborado um mapa que sobrepõe os pontos dos terreiros/templos e as áreas de risco geológico identificadas.

A análise identifica a proximidade entre os locais de culto de matriz africana e as zonas de risco. Essa interseção aponta para uma situação de vulnerabilidade tanto física, estrutural e de segurança, quanto simbólica, de preservação da cultura, de fé e de pertencimento.
“Quando o risco avança sobre o terreiro, não é só o barranco que desaba, é também a segurança espiritual da comunidade”, destaca Agonjaí.
Para a pesquisadora Aixa Lopes, especialista em desastres urbanos e integrante de estudos sobre zonas vulneráveis em bacias hidrográficas de Manaus, os desastres ganham gravidade quando se combinam com desigualdade urbana.
“Desastres naturais são situações em que uma comunidade é atingida por fenômenos extremos, como chuvas muito fortes, cheias ou deslizamentos, que causam muitos danos e prejuízos. Esses eventos ficam mais frequentes e mais graves quando cresce o número de assentamentos urbanos irregulares, aumentam as áreas precárias e as mudanças climáticas intensificam os eventos extremos”, explica.
A pesquisadora detalha que o atual mapeamento utilizado pelo projeto Cartografia da Resistência e do Cuidado é baseado nos dados públicos da CPRM 2025, que tornou “possível realizar essa associação entre as áreas de risco de Manaus e os templos, identificando localidades, como também o tipo de desastre ocorrido próximo a um templo específico.”
Principais achados
Há diversos templos localizados dentro ou muito próximos de zonas classificadas como R3 (alto risco) ou R4 (muito alto risco) pelo mapeamento da CPRM.
“As zonas Leste e Norte concentram o maior número de localidades e domicílios em risco. Além disso, notamos que a zona Sul e parte da zona Oeste, historicamente mais vulneráveis a enchentes e alagamentos, também apresentam templos em locais de risco de forma evidente”, relatou.

Segundo a atualização de 2025, o município de Manaus possui 362 setores classificados como risco alto (R3) e 76 como muito alto (R4), totalizando 438 setores e impactando aproximadamente 112 mil pessoas.
“As áreas de risco são conhecidas pelo poder público, como a Defesa Civil, que realiza monitoramento e envia alertas e orientações. Muitas vezes a população tem dificuldade de acessar esses dados em uma linguagem simples. Ela permite que a população participe do processo de construção das políticas públicas”, orientou.
No contexto da fé afro‐brasileira, os terreiros não são apenas locais de culto, mas centros comunitários, educacionais e de resistência identitária, o que amplia o impacto de qualquer risco à infraestrutura ou interrupção da atividade.
Relevância para a Semana da Consciência Negra
“O mapa apresenta claramente os territórios sagrados e a proximidade de áreas de risco; alguns deles estão no meio dessas áreas e o risco é iminente. A questão maior é que existe um contingente considerável de pessoas vivendo próximas a essas áreas e com os eventos climáticos cada vez mais graves, como fortes chuvas. É preciso agir", afirma o pesquisador Danilo Egle, pesquisador do Atlas ODS Amazônia.

Segundo ele, o mapeamento chama atenção para que as políticas de proteção não se limitem a manifestações culturais visíveis, mas também abarquem a segurança e a permanência dos terreiros e templos como parte do patrimônio imaterial e territorial negro.
O mapeamento revela que a proteção das expressões religiosas de matriz africana em Manaus passa também por um olhar para o território.
No mês em que se celebra a Consciência Negra, emerge o convite para que a fé, a cultura e o sagrado sejam parte integrante de políticas de prevenção de riscos, planejamento urbano e valorização patrimonial.
A preservação desses espaços, tão significativos para a comunidade negra, exige visibilidade, engajamento institucional e ação coordenada entre poder público, sociedade civil e comunidades de terreiro.