Considerado um dos maiores cartunistas do mundo, o mineiro Ziraldo Alves Pinto acaba de completar 90 anos nesta segunda-feira (24/10). A data não passou em branco, apesar do estado de saúde do pai do “Menino Maluquinho” a família organizou uma festa que começou já no sábado, em casa, no Rio de Janeiro, e seguiu por toda a segunda-feira, a data de nascimento do artista. De acordo com a postagem do Instituto Ziraldo, em suas redes sociais, foi uma festa de 36 horas de duração.
— Vamos ficar todos coladinhos. Ele está velhinho, super devagar, mas o humor não muda. É impressionante, ele tem uma ironia. Não é mole, não” -= comentou a roteirista Fabrizia Alves Pinto, a filha do meio de Ziraldo.
Difícil escrever sobre Ziraldo sem sentir alegria e uma imensa saudade dos anos em que o cartunista esteve na linha de frete do Pasquim, o chamado “jornal nanico” que enfrentou a ditadura como um gigante. Ou sem lembrar de Flicts, da Turma do Pererê, da generosidade exacerbada de Jeremias, o bom ou do imortal “Menino Maluquinho”, criado à sua imagem e semelhança.
Estudante inquieto do Colégio Pedro II e depois da Faculdade de Jornalismo da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), bebi o tanto que pude na fonte do genial Ziraldo, lendo tudo que tinha seu traço elegante seu humor mordaz. Estive com ele três vezes. A primeira em 1978, no Tropical Hotel, quando ele veio a Manaus a convite de Joaquim Marinho. Na época, eu o jornalista Paulo França – que foi comigo “ aventurar” no hotel para ver de perto o ídolo –, publicamos uma matéria a quatro mãos.
A segundo em 1982 quando, ousadamente, coloquei meus cartuns debaixo do braço, comprei uma passagem e viajei para o Rio, onde pretendia mostrar meus trabalhos para o Henfil e para ele mesmo, Ziraldo. Henfil estava viajando para São Paulo e quem me recebeu na redação do Pasquim, à rua Rua Saint-Roman, Copacabana, foi o próprio Ziraldo. Ao ouvir que eu tinha a pretensão de publicar minhas charges pela Codecri, a edfitora do Pasquim, Ziraldo não poderia ter sido mais generoso.
— Mário, eu gostaria muito de te ajudar. Seus desenhos são interessantes. Mas, sabe quantos cartunistas estão aqui na fila, esperando uma chance? – perguntou, e passou a falar dos nomes de alguns dos cartunistas que eu adorava e que faziam grande sucesso no sul maravilha – Nani, Luiz Gê, Edgar Vasquez, Mino, Redi, Caulos e outros. Depois disso perguntou:
— Vamos lá, em que eu posso te ajudar? – perguntou, perdido sobre uma bagunça de papeis, lápis, vidros de nanquim, canetas pinceis, tintas e o escambou.
— Ziraldo, que eu vou publicar, eu vou! Ainda não sei como, mas vou. Então, faz ao menos o prefácio.
— Isso eu posso! – exclamou, pegando umas laudas do Pasquim colocando na mesa e, na mão, passou a escrever o prefácio, sendo interrompido vez por outra pelo telefone, que ele atendia e despachava:
— Não posso falar agora. Você não imagina, mas eu estou escrevendo um prefácio para um garoto cartunista lá da Amazônia, que está aqui na minha frente.
Dizia isso e continuava escrevendo. “Eu já havia recebido aqui no Rio “O Dia da Abertura”, o livro com que o Mário Adolfo estreou. Inegavelmente, o jovem chargista da Amazônia progrediu neste. É como um rio, quanto mais ele avança mais se alarga. O Mário precisa apenas chegar a novos lugares. Conhecer mais gente, transar mais a vida. Pra ficar ótimo. Bom ele já é!”, escreveu, me dando uma tremenda colher de chá.
Reencontrei Ziraldo em 1985, em Manaus, na campanha Tancredo Presidente – logo depois da campanha Diretas Já ser derrotada no Congresso Nacional. Na manhã do comício, o escritor Mário Palmério, que havia comprado um barco para navegar no Amazonas “ antes de morrer”, recebeu o presidenciável juntamente com Ulisses Guimarães, o governador Gilberto Mestrinho e um turbilhão de artistas e jornalistas de todo o Brasil que quase afundam a embarcação. Naquele dia, fiz uma grande entrevista com Ziraldo que, mais uma vez, foi lúcido, divertido e crítico sobre a forma como a Amazônia era tratada.
“Nem sei como Ziraldo estaria encarando a tirania do governo Bolsonaro. Talvez com muita crítica e humor”
Agora, no dia em que Ziraldo completa 90 anos, parei pra resgatar essas lembranças que me acompanham por toda a vida. O acidente vascular cerebral (AVC) sofrido por Ziraldo, em setembro de 2018, abateu a legião de fãs do mineiro de Caratinga. Ziraldo ficou hospitalizado por quase um mês e foi obrigado, porn força da saúde, a se recolher.
Do lado de cá da floresta, quando a saudade aperta, folheamos as páginas amareladas das edições do Pasquim – que consegui manter encadernadas –, ou abrimos “O Pipoqueiro da Esquina”, que publicou em parceria com outro mineiro do cacete, Carlos Drummond de Andrade, ou retiramos da prateleira o Almanacão “50 Anos de Prontidão”. E aí, ao pousar os olhos em cada charge, a reação é inevitável – “Só Dói Quando eu Rio”. A frase – imortalizada pelo próprio cartunista em um de seus livros, reflete bem o momento político em que estamos vivendo sob a tirania do governo Jair Bolsonaro. E eu nem sei como Ziraldo estaria encarando tudo isso. Talvez com muita crítica e humor. Afinal, ele, juntamente com Jaguar, Millôr, Tarso de Castro, Paulos Francis –, viveu a mão de ferro da ditadura. Com toda a turma do Pasquim, foi preso quatro vezes.
— Ter podido atravessar os anos de chumbo fazendo o "Pasquim" foi uma dádiva. Morríamos de medo, mas fazíamos de tudo – foi assim que ele, certa vez, refletiu aquele momento. Apesar da força, da censura, da violência e do medo –, que, depois de tantas lutas em defesa da liberdade e da democracia voltaram e entristecer o Brasil de hoje, ninguém conseguiu silenciar ou fazer Ziraldo parar. Afinal, o menino com a panela na cabeça, criado pelo cartunista em em 1980, já vendeu 4,1 milhões de exemplares em 18 edições. Aos 90 anos, Ziraldo está vivo e cada vez mais idolatrado por leitores do mundo inteiro. E os ditadores, onde eles estão mesmo, hein?